Descriminalização do porte de maconha para uso pessoal anima o mercado…
mas especialistas avaliam que judicialização do tema é inevitável caso PEC das Drogas, que vai em direção contrária ao Supremo, seja aprovada no Legislativo
A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de descriminalizar o porte de maconha para uso pessoal no Brasil, sacramentada no fim do mês passado com a conclusão de um julgamento que se arrastava na Corte desde 2015, provocou uma onda de otimismo em um mercado que já experimentava um período de franca expansão no país. Atualmente, a chamada “indústria da cannabis” é voltada, principalmente, para o uso medicinal da planta, que possibilita tratamento para várias doenças.
De acordo com um levantamento da Kaya Mind, especializada no mercado canábico brasileiro, o país registrou, entre janeiro e maio deste ano, um crescimento de 35% na quantidade de solicitações de importação de produtos à base de cannabis em relação ao mesmo período de 2023 – foram quase 63 mil nos cinco primeiros meses de 2024, com média de 420 pedidos por dia. Apenas em maio, 1.540 dos 5,5 mil municípios brasileiros tiveram solicitações registradas.
Ainda segundo dados da Kaya Mind, cerca de 328 mil empregos formais e informais podem ser criados em 4 anos, caso sejam aprovadas regulamentações que tratem do uso medicinal, industrial e recreativo da maconha. Nesse cenário, a consultoria avalia que o mercado brasileiro de cannabis tem o potencial de movimentar até R$ 26 bilhões a cada ano. Hoje, o país conta com pouco mais de 80 empresas dedicadas a esse segmento e quase 2 mil produtos relacionados à cannabis.
No Brasil, apesar de o uso medicinal estar se intensificando, é necessário recorrer à importação – individualmente ou por meio de empresas especializadas – porque o cultivo é proibido. Em 2015, uma resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) liberou a importação de medicamentos à base de canabidiol em caráter excepcional, com prescrição médica.
No julgamento concluído no fim de junho, o STF decidiu que o porte de maconha continua sendo um ato ilícito – mas as punições aos usuários passam a ter caráter administrativo, e não mais criminal. Segundo o entendimento majoritário da Corte, a quantidade de maconha que vai diferenciar usuários de traficantes será de 40g, o que corresponde a 6 plantas fêmeas de cannabis.
O Supremo analisou a constitucionalidade do Artigo 28 da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006), segundo o qual é crime adquirir, guardar e transportar entorpecentes para consumo pessoal. A Corte foi provocada a se manifestar a partir de um recurso apresentado em 2011, no âmbito de um caso envolvendo a condenação de um homem que portava 3g de maconha, dentro de um Centro de Detenção Provisória (CDP) em Diadema (SP), a 2 meses de prestação de serviços comunitários. A Defensoria Pública questionou a decisão da Justiça de São Paulo de manter o homem preso.
Rota de colisão com o Congresso
Segundo advogados, especialistas e profissionais que atuam no mercado da cannabis no Brasil, a decisão do Supremo sobre a descriminalização da maconha para consumo próprio não coloca um ponto final no assunto. Ao contrário: a tendência é a de que o imbróglio envolvendo a descriminalização do porte para uso pessoal esteja apenas começando.
Isso porque o Legislativo já vinha analisando, desde o ano passado, uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que praticamente vai em direção oposta ao que foi decidido pela mais alta instância do Judiciário. A PEC 45/2023, de autoria do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), prevê a criminalização da posse e do porte de qualquer quantidade de droga.
Antes mesmo da decisão final do Supremo, parlamentares reagiram à iniciativa do STF de retomar o julgamento sobre o porte de maconha. O senador Eduardo Girão (CE), líder do Partido Novo no Senado, foi à tribuna para criticar o que classificou como “ativismo político-judicial” da Corte, que estaria ferindo a autonomia dos Poderes. “O STF é ativista, quer legislar, vai lá e insiste. Se existe uma matéria em que é inquestionável a atuação do Congresso Nacional, é essa sobre a política de drogas do Brasil”, afirmou, em pronunciamento no dia 21 de junho. “O Brasil quer essa PEC. Estão aí as pesquisas sobre a PEC antidrogas. É um apelo dos brasileiros. Eu apenas estou aqui manifestando a voz da sociedade.”
De fato, sucessivas pesquisas de opinião divulgadas nos últimos anos apontam que a maioria da população brasileira se diz contrária à descriminalização da maconha. De acordo com um levantamento recente do Ipec, que ouviu 2 mil pessoas com 16 anos ou mais em 129 cidades brasileiras entre os dias 4 e 8 de julho, 69% eram contra descriminalizar a maconha, ante 24% favoráveis. A mesma pesquisa mostrou que 67% reprovaram a decisão do STF e apenas 27% a apoiaram.
“O que a sociedade quer? É natural que o Legislativo acabe atuando de acordo com a maioria dos eleitores. O Código Penal traduz a cultura de um povo. Se hoje a droga é criminalizada, é porque a maioria da sociedade pensa assim”, observa Carla Rahal Benedetti, sócia de Viseu Advogados.
Por outro lado, segundo Benedetti, a reclamação de parlamentares quanto a uma possível interferência indevida do STF nas atribuições do Congresso não procede. “O Supremo é sempre instado a se manifestar. Ele tem duas opções: a primeira é dizer que se trata de uma questão do Legislativo e não analisar o caso”, afirma. “A segunda alternativa é fazer o que eles fizeram: julgar. As duas decisões são legítimas. Entendo que o Supremo está cumprindo seu papel porque foi provocado a se manifestar.”
Marcos Jorge, coordenador Jurídico do escritório Wilton Gomes Advogados, tem a mesma avaliação. “O STF não errou nem invadiu a esfera de competência do Legislativo. Nesse caso, houve uma provocação ao Judiciário, e o Supremo foi chamado a decidir sobre o caso”, observa. “O tribunal apenas analisou se a criminalização do porte de maconha para consumo próprio ofenderia o direito à privacidade e à intimidade do usuário, que são direitos e garantias individuais.”
Insegurança jurídica e batalha nos tribunais
Com a decisão do Supremo de descriminalizar o porte de maconha de até 40 gramas para uso pessoal, é este o entendimento que está valendo no país desde a publicação do acórdão do julgamento. Entretanto, se a chamada PEC das Drogas for aprovada pelo Congresso Nacional, ela vai alterar o texto constitucional e, assim, irá se sobrepor ao que definiu o Judiciário.
A PEC foi aprovada pelo plenário do Senado, em abril deste ano, por ampla maioria: 52 votos favoráveis e 9 contrários na votação em segundo turno. O projeto foi encaminhado à Câmara dos Deputados e já obteve a chancela da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Casa. O texto passará por uma comissão especial antes de ser encaminhado para votação em plenário. Por se tratar de uma emenda constitucional, a proposta precisará contar com apoio mínimo de ⅗ dos deputados (pelo menos 308 dos 513) em dois turnos de votação.
“Não é saudável para a democracia haver um choque entre Poderes. Isso cria uma insegurança jurídica. Hoje, para a sociedade, pela decisão do STF, foi reconhecida a possibilidade do porte de maconha para consumo próprio. Mas depois pode vir uma norma que altera a Constituição, criando dificuldade para a população entender o que, de fato, estará valendo”, afirma Marcos Jorge.
A tendência é a de que, com a aprovação da PEC, o tema volte a ser analisado pelo Supremo a partir de contestações eventualmente apresentadas por meio de Ações Diretas de Inconstitucionalidade (Adins). Em linhas gerais, trata-se de um pedido ao STF para que a Corte avalie a possível violação de norma a princípios constitucionais. Uma Adin pode ser proposta pelo presidente da República, pelos presidentes do Senado, da Câmara ou de assembleias legislativas, pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), pelo procurador-geral da República, por partidos políticos ou por entidades de classe.
“Se a PEC passar e o Supremo for provocado a julgar a constitucionalidade da emenda constitucional, ele vai analisar sobre dois aspectos. Primeiro, se houve a tramitação correta do procedimento legislativo e se todos os ritos previstos na Constituição foram respeitados. Depois, sob o ponto de vista da matéria legislada. Nesse caso, certamente o STF vai se deparar mais uma vez com a situação do constrangimento das garantias e dos direitos individuais”, explica Marcos Jorge.
Carla Rahal Benedetti aponta outro problema: a PEC propõe mudanças no Artigo 5º da Constituição, que trata de direitos e garantias individuais – considerados cláusulas pétreas, ou seja, que não podem ser alteradas nem mesmo por PEC. “O que deve acontecer, muito provavelmente, é a apresentação de novas propostas de Adin que ficarão discorrendo acerca desse tema. Uns entendem que é direito individual do usuário de drogas fazer o que bem entender com o seu corpo e outros entendem que o usuário alimenta o tráfico”, diz a advogada.
“Se querem colocar essa emenda à Constituição no Artigo 5º, que trata dos direitos individuais e que são cláusulas inamovíveis, a discussão vai ficar ad aeternum nesse caso. Alguém terá de parar com isso, não sei o que pode acontecer”, alerta Benedetti. “Entendo que caberia ao Congresso determinar isso. Mas, por outro lado, se aquelas partes legitimadas para propor uma Adin se acharem no direito de apresentar essa ação perante o Supremo, teremos um equilíbrio de forças. Obviamente, cada Poder tem os pesos e contrapesos em relação aos demais. Só que é preciso haver harmonia.”
Impacto no mercado da cannabis
Também ouvido pela reportagem, o CEO da Netseeds, Luiz Borsato, classifica a PEC das Drogas como “devastadora” para o mercado canábico no Brasil. “É um pouco sobre comemorar, por um lado, a decisão do STF, e lamentar, por outro, a PEC. Essa proposta volta algumas casas para trás, anula parte de uma lei que já existia e, mais do que isso, define quantidades ínfimas que, hoje, qualquer pessoa que produza seu medicamento atingirá. Estão falando em 5 gramas [para diferenciar usuário de traficante]. É um retrocesso muito grande”, critica. “Que investidor quer colocar o seu capital em uma areia movediça, que afunda quando você pisa? Isso trava, economicamente, um mercado de grande potencial no Brasil.”
Segundo Borsato, a decisão do STF é um “avanço”. “Por mais que muitos digam que a gente só quantificou, em números, alguns aspectos da lei existente, acredito que seja um avanço, uma vez que estamos falando em descriminalização do porte para uso pessoal. Descriminalizar a planta é um passo que deve, sim, ser comemorado”, diz.
“A partir do momento em que tivermos essas cultivares reguladas e o agronegócio puder ter lavouras comerciais com cânhamo [planta pertencente à família da cannabis], teremos um boom econômico na cadeia do agro, do processamento e do uso”, projeta Borsato. “O potencial econômico da cannabis é gigante, mas ainda estamos presos à insegurança jurídica que retrai a escalabilidade do mercado.”
O CIO, sócio e cofundador da Kaya Mind, Thiago Cardoso, entende que a decisão do Supremo traz “benefícios indiretos”, mas não será capaz, por si só, de causar um grande impacto no mercado. “Tivemos o aumento massivo do número de veiculações sobre cannabis nos principais veículos de imprensa do Brasil. Você tem uma atração do mercado simplesmente pela maior divulgação do tema no país. Mas, pensando em termos práticos, avalio que, no curto e médio prazo, o impacto será limitado”, afirma.
“Em relação ao uso recreativo, não acho que haja um impacto em termos de aumento do número de usuários. Não vimos isso acontecer em nenhum lugar do mundo. É claro que o mercado se desenvolve, muda e evolui, ganha penetração, mas não acho que haverá aumento da quantidade de pessoas que consomem”, avalia.
De acordo com estimativas da própria Kaya Mind, o mercado da maconha no Brasil movimentou, em 2022, quase R$ 363 milhões e, no ano passado, R$ 655 milhões. Para Cardoso, as perspectivas são de crescimento nos próximos anos, mas a insegurança jurídica é o maior entrave. “Esperamos que este ano o mercado ultrapasse R$ 1 bilhão e continue crescendo, ainda que de forma estrangulada, diante do que o Brasil teria capacidade de fazer”, aponta. “Como ainda temos um mercado muito controlado, há insegurança jurídica tanto para as marcas que entram quanto para os médicos que prescrevem ou mesmo para os pacientes.”
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